domingo, novembro 19, 2006

Mulheres em Shakespeare



1.
A SOMBRA DE LADY MACBETH

Me aproximo de tua loucura.
São murmúrios e presságios,
vozes agudas de entes que anteveem a tua glória.

Não acredito nelas.
Não, não serás rei, nem conde,
apenas o amo de minhas entranhas.

Não quero que te ausentes, que te demores em batalha.
De que servem os murmúrios, se todos te afastam de mim?
Entes do escárnio que te povoam de loas e pressagiam teu fim.

A floresta não se move e todo filho tem sua mãe.
Não és imbatível, nem invencível; me ouve:
não duvides do que digo.
Mas em tua soberba queres mais.

Ouço tua loucura e me deixo embeber
Pela altivez de teu olhar santo:
amaldiçoado ser, assassino de teu suserano:
a ti restou o fado de não ser coroado.

Agora, minha mão toma a tua para lavar com sangue
a glória que almejaste
e manchar-me de despudor.

Não haverá mais manhãs para nós.
Não mais poderemos ansiar pela aurora.
Todo dia terá o sangue em seus baixios,
ocultando-se nos calabouços.

Ouve, o trinar dos pássaros a anunciar a alba:
de ti me despeço para não mais viver à tua sombra.

Santa Teresa, 2/11/2006 – 18h03

2.
O CANTO DE DESDÊMONA

Não fosse Iago teu carrasco,
tu não serias o meu.

Que homem duvida da mulher que o acolheu?

Acaso as flores não brotam antes do fruto?
Acaso não espera a semente por sua árvore?

Tudo perdi antes de tê-lo.

Assim, te repudio por teres arrancado
de mim a vida que te dei.

Santa Teresa, 3/11/2006 – 18h58

3.
A BARCA DE CLEÓPATRA

Meus mares não são mais espessos que teu sangue.
Por onde singro, carrego-te comigo.

Minhas lutas foram vãs, paródias de minha vida,
invisíveis atos que perpetramos.

Batalhas inglórias, todos os nossos feitos.
Meus filhos mortos, minhas aias nuas.

Em teu peito, a desonra de perderes teu reino,
filho de César, irmão de minha alma.
Nenhum alento te toma,
nenhum consolo me anima.

Nenhum império me subjuga.
Homem algum me arrasta pelas ruas.

Meu destino de rainha perdeu-se pelas areias,
a última serva de Ísis.

Minha terra me foge sob os pés.
O que construí ao teu lado, agora sucumbe.

Tu te vais.
Eu te sigo.

Santa Teresa, 12/11/2006 – 01h01

4.
A MORTE DE OFÉLIA

Move-se a súbita aurora,
as vestes em transparentes águas,
o relevo de meu corpo imerso,
suave dama do idílio,
do amor mil vezes negado,
mil vezes sublimado,
em teu colo, meu poema.

Jaz meu corpo nas águas,
deitado em cova fria,
meu doce leito de morte,
levando o amor que me deste.

A mim emprestaste tua alma,
teu fervor filial, tua vingança insana.
Na pérola e na espada, o veneno.
Minha voz jamais ouvida,
meu canto por ti perdido.

A mim deste a loucura,
que me arrebatou a vida.

Santa Teresa, 4/12/2006 – 00h00

5.
O VÉU DE JULIETA

Eu me despeço de ti
sobre meu leito de núpcias.

Depois, sobre minha tumba,
onde jazes, antes mesmo de mim.

Despeço-me do rouxinol, da cotovia,
da púrpura de minhas vestes,
da seda dos meus cabelos.

Nem ardil nem poção nos salvou.
Nem carta nem espada nos uniu.

A mim não foi dado amar mais ninguém.
Para ti, o amor veio como castigo.

Verteste o sangue de meu primo,
cravaste o coração de minha mãe.

Tão breve foi nosso interlúdio:
duas noites, dois dias e outro crepúsculo.

Rápido chegaste, tão rápido partiste,
Antes de tombar a romã sobre o jardim.

Não pendesse a morte sobre tua fronte,
penderia sobre mim sua face vazia.

Bendição de presságio com ásperas asas,
arrancando-te de meus braços.

Do boticário, o veneno; em minha mão
tua adaga, a me dar o destino.

Santa Teresa, 26/12/2006 – 3h48

6.
O ADEUS DE HELENA DE TROIA

Serão motivos
o que perdemos
essa a última dor conhecida.

Resgatamos
o que fizemos de nós
a face rubra
a face pálida
o cálice entornado
efêmero resquício.

Perdido o chão, outra aurora
toda manhã ressurgida
apesar de
embora
sempre seja o mesmo dia.

Enquanto tudo for segredo
vida e morte andarão juntas
à beira de um precipício.

Não nos deixa o fardo de todas as coisas
imprevisíveis sinais abaulados
em que a longa mão alcança
o naco de tristezas, imponderável.

Bebemos a antiga angústia
e de nosso ventre vertem
lagos
profundos olhos de deuses
falhos.

15/04/2008

7.
O AMOR DE CATARINA

Dialogamos em poesia:
não há outro modo,
outro que eu reconheça,
outro de amá-lo,
embora em ti todas as formas se incluam.

Espero cada coisa a seu tempo,
sem desespero,
sem mais nada senão o momento
e tudo o que ele encerra.

A água percorre um caminho de pedras
assumindo infinitas formas
e sendo sempre a mesma.

Quando entregamos tudo o que temos ao amor,
tornamo-nos mais ricos.

Meu amor é sempre o mesmo,
aprendendo a reconstruir do nada.
Mais uma vez a vida se reinicia.

Sou a que conheces.
A mulher que amas.
E assim me sinto,
a última a galgar os degraus de mármore,
a vida dada como oferenda,
antecipando o futuro em nossas palavras.
Tudo dito e consumado.

Sou como és,
não te digo tudo,
mas suavemente te direi,
mesmo que eu não saiba,
mesmo que seja segredo até para mim.

Vivemos o melhor e o pior.
E nunca amamos tanto.
Nunca nos dedicamos por tanto tempo a uma só pessoa.
Digo, continuamente, amiúde.

Sou esta que vês: quem tu amas.
Frágil muitas vezes,
outras, mais forte,
mas não me sinto mais só.

Sou para ti o que nunca fui para mim.
Nunca experimentei o que vivo ao teu lado, sozinha.
E assim quero que seja, antes de tudo.
Espero-te, amanhã.
Em casa.

15/04/2008